Capítulo 06: Os traumas vivenciados por crianças vítimas de violência sexual
- Rafael Miranda
- 9 de ago.
- 7 min de leitura
Atualizado: 13 de ago.
O caso que resultou na condenação e prisão do pastor Saulo Inácio de Sousa foi identificado, pela primeira vez, dentro do ambiente escolar em uma unidade da rede municipal de educação de Palmas em 2018. As vítimas, Débora* e Ester*, na época com idade próxima aos 13 anos, apresentaram mudanças significativas no comportamento decorrentes dos abusos sexuais que sofreram anos antes, em 2016 e 2017.
A identificação de sinais de abuso sexual em ambientes escolares, como o que ocorreu com as vítimas Débora* e Ester*, reforça a importância da rede de proteção e do papel de profissionais qualificados. No entanto, o processo de cura das vítimas vai muito além do momento da denúncia, estendendo-se por anos, e muitas vezes, por toda a vida.
Os traumas causados por esse tipo de violência podem se manifestar de diversas formas, afetando o desenvolvimento emocional e psicológico de crianças e adolescentes, e persistindo na vida adulta.
Para compreender melhor a complexidade desses traumas e o impacto duradouro do abuso sexual, o Jornal Primeira Página entrevistou a psicóloga Ana Carolina Peixoto do Nascimento. Em uma conversa detalhada, a profissional aborda os traumas mais comuns, a forma como a violência na infância afeta o desenvolvimento a longo prazo e a importância de uma abordagem segura e educativa sobre o tema com as crianças.
Ana Carolina Peixoto do Nascimento é psicóloga (CRP 23/1253), especialista em Psicologia do Desenvolvimento Infantil e Adulto (UNIARA), mestra em Ensino em Ciências e Saúde (UFT) e doutora em Ciências e Tecnologias em Saúde (UnB). A profissional atua com crianças e adolescentes no Devir Espaço Terapêutico, sediado em Palmas, além de ser docente do curso de Psicologia do UniCatólica e pesquisadora no campo da Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, Redução de Danos e no cuidado com pessoas em situação de rua.
Como a rede de ensino de Palmas atua em casos de abuso sexual? Município ainda busca estruturar protocolos
Para compreender como as escolas de Palmas atuam como parte dessa rede de proteção, o Jornal Primeira Página solicitou informações à Secretaria Municipal de Educação a respeito dos protocolos de atendimento, processos internos e dados sobre notificações junto ao Conselho Tutelar em casos de violência sexual identificados no ambiente escolar.
Atualmente, a rede de educação em Palmas declarou que não possui, ainda, um fluxo de processos e protocolos padronizados em caso de identificação de sinais de abusos dentro das escolas junto aos estudantes. "Cabe a cada unidade escolar fazer a notificação junto ao Conselho Tutelar quando esse cenário ocorre."
"O Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS), vinculado à Diretoria de Ensino Fundamental (DEF), encontra-se atualmente em processo de construção de protocolos institucionais voltados ao fortalecimento do suporte técnico às unidades escolares que dispõem de equipe psicossocial. Considerando que a constituição atual do NAPS é recente, os fluxos institucionais ainda estão em fase de elaboração, exigindo um processo aprofundado de escuta, análise e sistematização das práticas já existentes nas escolas."
Conforme apurado pelo Jornal Primeira Página, não existem números consolidados de encaminhamentos que foram realizados pelas escolas ao Conselho Tutelar, a partir da identificação de abusos em alunos e alunas.
"Os profissionais da equipe psicossocial estão atualmente realizando o levantamento sistematizado das demandas registradas nas unidades escolares, com o objetivo de consolidar dados quantitativos e qualitativos mais precisos e alinhados às diretrizes éticas e institucionais", informou o município.
A Secretaria de Educação informou que "a comunicação com os órgãos da rede de proteção se dá, inicialmente, no âmbito da própria unidade escolar. Quando identificada uma situação de possível abuso sexual, a escola realiza a notificação direta ao Conselho Tutelar, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)."
Quanto à presença de profissionais treinados em todas as escolas municipais para realizar escuta ativa e identificar sinais de abuso, a Prefeitura de Palmas respondeu que "está organizando uma proposta de formação continuada com foco na escuta ativa e na identificação de sinais de abuso e outras violações de direitos. Essa capacitação técnica está prevista para o segundo semestre, em parceria com o setor de formação da própria Secretaria, conforme o cronograma institucional vigente."
O município informou ainda que a rede municipal de educação já conta com a atuação de analistas educacionais — psicólogos e assistentes sociais — que atuam por polos, acompanhando um conjunto de unidades escolares de forma itinerante.
"O fato de essas escolas contarem com equipe psicossocial já configura a presença de profissionais especializados, aptos a realizar escutas técnicas e oferecer suporte diante de situações de vulnerabilidade", destacou em nota.
"Evitar a revitimização é fundamental" - entrevista com Érica Pollyana, Assistente Social da Secretaria de Educação de Palmas
Para aprofundar mais sobre o papel que as escolas desempenham na rede de proteção à criança e ao adolescente, o Jornal Primeira Página entrevistou Érica Pollyana Oliveira Nunes, que é Assistente Social do Núcleo de Atendimento Psicossocial (NAPS) da Secretaria Municipal da Educação de Palmas.
Nesta entrevista, Érica detalha como funciona o atendimento com a escuta ativa feita nas escolas municipais em Palmas, além dos sinais que as crianças vítimas de abusos sexuais podem manifestar e que os responsáveis devem ficar atentos. Confira abaixo.
Jornal Primeira Página - Quais são os sinais físicos, emocionais e comportamentais que podem indicar que uma criança está sofrendo abuso sexual?
Érica Pollyana - "Os sinais podem variar muito de criança para criança e de sua respectiva faixa etária, mas geralmente envolvem alterações significativas no comportamento. No aspecto físico, podem surgir lesões, infecções ou dores na região genital, por exemplo. Já os sinais emocionais incluem tristeza profunda, isolamento, medo excessivo de determinadas pessoas ou lugares, além de comportamentos regressivos para sua idade. Do ponto de vista comportamental, mudanças bruscas como agressividade, queda no rendimento escolar, hipersexualização ou evitação de contato físico são indícios que devem acender um alerta."
Jornal Primeira Página - Como diferenciar esses sinais de outras questões, como ansiedade ou mudanças normais do desenvolvimento?
Érica Pollyana - "Essa é uma questão complexa, que exige a atuação de uma equipe técnica qualificada dentro das escolas. Muitos dos sinais de abuso sexual podem se assemelhar a manifestações de transtornos emocionais, vivências traumáticas ou até a etapas naturais do desenvolvimento infantil. Por isso, é essencial que a escola adote um olhar atento e sensível, levando em conta o histórico da criança, seu contexto sociofamiliar e a frequência ou intensidade dos comportamentos observados. A escuta qualificada, realizada por profissionais capacitados da área psicossocial presentes na escola, é fundamental para levantar hipóteses com responsabilidade. Em caso de suspeita, é dever da instituição acionar imediatamente a rede de proteção por meio da notificação compulsória, permitindo que o caso seja avaliado de forma interdisciplinar e protegendo a criança de possíveis riscos."

Jornal Primeira Página - Qual é a importância da escola para identificar possíveis casos de abuso sexual infantil?
Érica Pollyana - "A escola é, muitas vezes, o único espaço de convivência fora do ambiente familiar. As crianças passam grande parte do dia ali, onde constroem vínculos com professores, orientadores educacionais, diretores, analistas educacionais e demais profissionais da unidade educacional. Esses vínculos favorecem a percepção de mudanças comportamentais e a criação de um ambiente de confiança. Além disso, a escola tem o dever legal e ético de zelar pela proteção integral da criança, funcionando como um importante porta de entrada para a rede de proteção."
Jornal Primeira Página - Como a escola pode abordar a criança de forma segura e acolhedora ao suspeitar de um caso?
Érica Pollyana - "A abordagem deve ser feita com muito cuidado, em um ambiente reservado e acolhedor, por alguém que tenha vínculo e escuta sensível – geralmente, o(a) psicólogo(a), assistente social, professor(a), pedagogo(a) ou outro profissional capacitado. O mais importante é permitir que a criança fale no seu tempo, sem pressão, sem perguntas sugestivas ou julgamentos. A escola não deve investigar, mas sim ouvir e registrar os relatos espontâneos e notificar o caso. Esse acolhimento inicial pode ser determinante para interromper o ciclo de violência."
Jornal Primeira Página - Como funciona o processo de uma escuta ativa em casos como este?
Érica Pollyana - "A escuta ativa é uma técnica baseada no respeito, empatia e atenção plena. O objetivo é garantir que a criança se sinta segura para expressar o que está vivenciando. Envolve estar presente, ouvir com atenção, sem interromper ou questionar a veracidade do relato. Na escola, a escuta deve ser apenas o suficiente para entender que há um indício de violência. A partir daí, o caso deve ser encaminhado para os órgãos competentes, como o Conselho Tutelar, Ministério Público e, se necessário, serviços especializados de atendimento psicossocial."
Jornal Primeira Página - Como a escola deve agir para evitar a revitimização da criança durante a escuta e o encaminhamento do caso?
Érica Pollyana - "Evitar a revitimização é fundamental. Isso significa que a criança não deve ser submetida a múltiplas escutas ou questionamentos repetitivos, nem incentivada a relatar os fatos diversas vezes. A escola deve acolher e registrar apenas os sinais ou relatos iniciais, acionando de forma imediata a rede de proteção, sem realizar mais de uma escuta dentro do ambiente escolar. É importante lembrar que o papel da escola não é investigar, mas sim proteger. Além disso, é essencial garantir o sigilo e preservar a identidade da criança e de sua família. Esse processo deve ocorrer de forma articulada, com base em um fluxo de atendimento padronizado e legalmente respaldado, conforme os protocolos da rede de proteção à infância e adolescência."
Próximo Capítulo
Capítulo 07 – Violência sexual no Tocantins: dados, investigações e justiça
Confira os dados sobre os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Tocantins, além do trabalho investigativo da Polícia Civil, por meio da delegacia especializada em Palmas. O capítulo traz ainda uma entrevista com um promotor de Justiça sobre a legislação e a atuação do Ministério Público em casos de abuso contra a população vulnerável.



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